30 novembro 2009

a gente nunca pensa que pode ser conosco - (relato)


Naquele fim de tarde estava lá, ajudando Maria na sua pequena horta, enfiando meus dedos enegrecidos no solo de esterco de galinha muito bem preparado para transplantar aquelas mudas de alface exatamente na lua crescente. Fiquei por alguns minutos totalmente absorta não na atividade, mas, no meu Self. O que eu queria mesmo era cavar para encontrar a mulher de 2 milhões de anos, a minha ancestralidade, os meus ossos, a parte mais resistente de mim.

Depois, corri com Valentina (sua filha de 02 anos), rimos e brincamos no fim de tarde nas margens do Río Baker. Somente voltei para a minha dor novamente quando entramos na casa para tomar "las onze" (uma espécie de lanche antes do jantar). Quando sentei perto do fogão de lenha, meus olhos voltaram-se para baixo e meu corpo se apropriou de novo da dor de minha perna, os pés vermelhos, inchados, a coçeira. Para evitar mais uma noite sem dormir, Maria me ofereceu uma pomada natural de arruda para meus pés. Funcionou muito bem.

Na manhã seguida, acordamos cedinho e fizemos contato via rádio com o coordenador de logística da NOLS para certificarmos de nosso encontro ao meio-dia na Carretera, na casa de Don Crístian y Dona Rosa Arratia. Tudo certo, entramos no bote e começei mais uma parte da viagem, despedindo visualmente daquelas belíssimas montanhas remotas da região de Aysen, entre os Campos de Gelo Norte e Sul da Patagônia Chilena. Quando chegasse na casa do casal, ainda esperaria o carro da NOLS e teria mais uma viagem de carro até Cochrane, finalizando a minha operação de evacuação de campo. Tudo começara três dias antes assim:

Naquela sexta-feira 13, nós, instrutores , nos reunimos e decidimos passar as informações (via telefone satélite) para o escritório da Escola e para WMI (Wilderness Medicine Institute), pois  não tínhamos mais "controle" sobre o meu quadro de saúde. Já havia 10 dias que tinha sido picada por uma provável "aranha", e não víamos nenhum retrocesso da inflamação com os antibióticos, ao contrário, a aparência da lesão e a evolução dos sinais e sintomas só nos deixava assustados dia após dia.  Tudo indicava que estava com uma severa picada de aranha e como a lesão já apresentava ulceração, provavelmente estava também com uma infecção (o que explicava outros sintomas de debilidade no meu organismo). Foi pensado uma logística para que eu saísse dali o mais rápido possível e definido no mesmo dia. Como podia andar, mesmo sem a mesma eficiência e energia de antes, o plano incluía:
sair com uma equipe (02 instrutores + 02 alunos) até a junção do Río Solo (uns 4 km de vara-mato) e lá encontrar o Bernardo Arratia ( que, junto com seu irmão, Lautauro, tinha levado à cavalo todo o nosso suprimento de comida para o resto do mês-300k - dias antes até aquele ponto);
viajar de cavalo com Bernardo pela cordilheira por 02 dias até chegar a sua casa, nas margens do Río Baker;
viajar de bote no Río Baker com Lautauro até a carretera
Ir para casa dos pais de Lautauro e Bernardo (Don Cristian e Dona Rosa) na carretera e esperar o carro da NOLS
Viajar de carro até Cochrane e receber o atendimento médico inicial.
Viajar até Coyhaique (de ônibus) e chegar na NOLS e ir à um atendimento mais específico, dermatologista.
Betsy tinha feito um mingau de aveia maravilhoso aquela manhã, dei umas colheradas e fechei meu tapperware para comer mais tarde. Trevor e Clark (alunos) estavam super dispostos, sensíveis e cheios de paciência comigo, mas a minha já tinha sumido há alguns dias.
Acho que este foi o dia em que mais irritada estava, extremamente impaciente, intolerante e fraca. Minha mente, meu corpo. Eu era só fragilidade, mas não me permitia ser, afinal, sabia que tinha um longo percurso pela frente. A gente só estava começando, e eu só sentia a dor, o peso da mochila apoiando no meu quadril, era o suficiente para pressionar minha perna, tinha que me preocupar em afastar os galhos que passava para não tocar na coxa (picada), passar por cima dos milhões de troncos caídos era um tormento. Ali eu me dei conta o quanto estava debilitada.
Os últimos dias tinham sido muito duros de encarar segurando tanta dor, preocupação e tensão. Tínhamos feito porteios dois dias seguidos com muito peso e neste terreno (floresta fechada cheio de calafates – espinhos- e troncos para passar por cima ou por baixo), estava chovendo há dias, ou seja, ficava o dia inteiro molhada, usando a energia de meu corpo para secar a roupa e só à noite tinha horas de repouso, no entanto já estava sem dormir há dois dias por conta das dores, hipersensibilidade alérgica e coçeira. Tive energia para fazer tudo isso, mas tomava remédio para dor para poder estar de pé.
Não sei se fui longe demais, mas certamente isto custou a minha melhora, estava com uma infecção, com as consequências de uma picada de aranha evoluindo, mas agia como se no dia seguinte tudo ia melhorar. Naquele último hiking, eu definitivamente olhei para o meu medo, ele era enorme, na verdade ele era gigante; e apesar de triste por sair do curso na metade, eu queria muito sair dali, queria ver um médico, queria minha saúde de volta.
Quando paramos para lanchar e estava saboreando o delicioso mingau com castanhas, fomos surpreendidos por Bernardo. Ele tinha chegado 3 horas e 2 kilômetros antes do horário e local combinados. Ficamos todos boquiabertos com a eficiência dele. Redefinimos o plano e dali eu seguiria com ele pela floresta, e os outros poderiam dar meia-volta dali para o acampamento. Esta parte foi frenética, fiquei muito cansada, levava quedas ridículas, com meu piolet enganchando nos galhos, desequilibrando nos troncos altos. Bernardo Arratia, 36 anos, nascido e criado nas cordilheiras da patagônia chilena, tem uma habilidade, eficiência e atitude diante de um off-trail impressionantes. Eu não acreditava que o cara tinha passado segundos antes de mim, pelo menos lugar com tamanha agilidade. Era a primeira vez que ele passava ali naquele trecho, falou que achou o “caminho”, pelo rastro que tínhamos deixado (dias antes passamos com o grupo por lá e demoramos 5 horas). Demoramos uma hora até chegarmos à junção onde encontramos 02 cavalos.

Estava chovendo muito, rapidamente ele recolocou as selas dos cavalos, dividimos o peso de minha mochila entre eles e sem se prolongar muito, me ajudou a subir no cavalo e me orientou o que fazer caso o cavalo baixasse a cabeça – querendo cair- ainda disse para manter uma mão na rédea e outra na pele de ovelha a qual estava sentada para me segurar. Eu não me lembro se naquela hora alguma palavra saiu de minha boca ou só respondi balançando a cabeça. Eu escutei, mas estava prestando atenção mesmo na correnteza e volume do rio. Nem de longe parecia o mesmo rio que tínhamos cruzado andando 5 dias antes, mas como chovera muitos dias seguidos (segundo Bernardo, “chuva quente é só água!”, ou seja a temperatura não abaixou nos dias de chuva, não houve neve ou congelamento) e por estarmos ainda alto na cordilheira, o rio tem característica mais estreita, isto implica maior fluxo com mais rapidez.

Era o primeiro cruze dos 15 que fizemos nos 02 dias. Mas, certamente foi o mais desafiador e perigoso. Por isto a pressa de Bernardo em sair dali logo, foi muito difícil ele chegar ali e ainda mais voltar com uma outra pessoa em total segurança. Como ele mesmo falou: “ pelo menos você fala espanhol”. É verdade, falava em espanhol, mas, nunca na minha vida tinha cruzado um rio daqueles à cavalo. Não tem outra palavra para definir senão: assustador. As pedras enormes dentro do rio, completamente cobertas de água; montada no cavalo, a água chegava na altura de minha canela; o cavalo cruzava numa linha diagonal, porque era empurrado rio abaixo pela água, pisava no chão, mas não era chão era a borda de uma rocha que escorregava e então ele desequilibrava, baixava a cabeça subitamente e eu puxava as rédeas rapidamente. Eu pensei muita coisa nessa hora: fiquei concentrada no que estava acontecendo, tentava me comunicar telepaticamente com o cavalo e, já tinha feito uma leitura do rio , caso caísse sabia para onde ia nadar e, muito eficiente, pois a água era congelante.

Foi assim: ininterrupto e tenso por quase duas horas. Os cachorros de Bernardo: Chicote, Revenque e Portenha nos acompanhavam, e os rios para eles eram obstáculos do cotidiano, possivelmente banais, com exceção de Chicote, que apesar de parecer o mais forte, chorava por minutos antes de entrar no rio largo e gelado. Foi tudo meio perturbador no começo do primeiro dia, tudo ali estava dolorido, quando estava em cima do cavalo (significava que estávamos cruzando rios) tinha vontade de descer, tamanha a insegurança; quando estava fora do cavalo (significava que estávamos subindo um terreno muito inclinado ou mato fechado ou puxando o cavalo em trechos com muita lama) também queria descer.

Duas horas depois encontramos o outro cavalo que Bernardo tinha levado como apoio, colocamos toda a carga neste terceiro cavalo e seguimos mais um pouco até encontrar a barraca que ele tinha dormido na noite anterior e que saíra às 05:00h para ir me encontrar. Ainda chovendo muito, descemos dos cavalos, me alonguei um pouco e ele começou a ferver a água para o mate. Foi um momento realmente muito bom. Creio que bebemos mais de um litro de mate! Com toda a riqueza de suas propriedades e com seu caráter energético, o mate não foi tudo o que precisava, mas me fez muito feliz. Respirar, compartilhar, sorrir. Apesar de todas as dificuldades, aquela experiência estava sendo de um valor único, e por um lado, mesmo que não muito aparente, eu estava gostando também muito de tudo.

Foi este movimento paradoxal que permaneceu por todo o dia. Situações como o cavalo atolar a pata inteira entre as raízes, cair e eu não sair por não conseguir tirar meu pé do estribo (por causa das botas duplas), me fez não usar mais os estribos (pois o risco evidentemente era maior), para compensar a segurança fazia um esforço de equilíbrio enorme para não cair ou não ter a cabeça “decepada” ou um olho furado (dentro da floresta). Era surreal a quantidade de obstáculos dentro da floresta em cima de um cavalo. Se eu lembrava da picada de aranha? Era a última coisa que iria passar na minha cabeça.

Sentia-me visceralmente envolvida com aquela situação. Tinha muita magia e magnitude ao redor, impossível não absorver aquilo. Aos poucos a chuva foi parando, estava aquele vento frio, tínhamos acabado de cruzar um rio; e eu estava lá, troteando na margem do rio, sendo levada e me conectando com a tranquilidade daquele lugar, com a pele de ovelha apoiando todo o meu cansaço, quando, inesperadamente, uma raposa linda surge e, muito calma atravessa nos olhando, desfilando metros à frente do cavalo de Bernardo, que ia na frente. Foi um presente incrível, mas que só durou os segundos suficientes para ela perceber a presença dos cachorros e vice-versa. Começaram então uma correria dentro da floresta. Fiquei ouvindo aquela barulheira toda por muito tempo, cavalgamos muito até os cachorros voltarem e decidirem se entreter com outra coisa.

Quando chegamos em una casita (abandonada, mas cuidada pela família Arratia), nosso abrigo para aquela noite, o poblador, depois de tirar a sela dos cavalos, foi providenciar a lenha para o fogão. Tínhamos um fogão e comida (pois estava levando minha parte do curso de volta). Naquela noite nos alimentamos de uma sopa muito gostosa que fizemos com um pouco de carne de cordero e papas (que Bernardo levava) e pasta (que trazia comigo). Penduramos as roupas molhadas e secamos enquanto tomávamos mais mate.

Apesar de não ter dormido bem à noite, o dia seguinte estava bem mais leve, já tínhamos percorrido os terrenos mais difíceis e embora tívessemos mais cruze de grandes rios e mais montanha para subir e descer puxando o cavalo nos atoleiros, me sentia tranquila quando checava a expressão de Bernardo e só aparecia a serenidade, concentração e naturalidade. Aquele segundo dia também não foi fácil, os cavalos estavam nitidamente exautos, empacavam porque sabia que poderia atolar ou cair nas pedras; muitas vezes, nas descidas tinha que puxar o cavalo e, ao mesmo tempo correr para dar uma distância para não ser atropelada e; como eu já esperava perdi uma lente de contato. Estava demorando pra acontecer, em uma das passagens pelo mato fechado, um galho bateu no meu olho, senti dor, fechei e minha lente saltou. Eu fiquei acompanhando ela ir pulando do meu rosto, para minha capa de chuva, para o chão e então, fechei um olho para enxergar melhor o caminho.

Chegamos na casa de Bernardo Arratia à tarde, estava um tempo bom, calmo. Sentíamos um grande alívio por ter chegado e por tudo ter sido bem sucedido. Horas depois chegou Lautauro para nos ajudar a fazer as tortas (tradicionais pães fritos da Patagônia Chilena). E me fez o convite para dormir na sua casa com sua esposa Maria e sua filha Valentina.

O fim da operação se segue tal como descrevi no inicio do texto. No dia seguinte fui de bote com Lautauro para a carretera e de lá para a casa do Don Cristian e Dona Rosa. O Don Oscar, motorista da NOLS me pegou e continuamos a viagem até Cochrane.

Até chegar em Coyhaique (mais dois dias depois), eu não tinha certeza do que estava acontecendo comigo. Tinha um relato e registros (por meio de fotos) da evolução de uma picada, que provavelmente era uma aranha (já que tínhamos visto uma aranha marrom e outra preta com pernas vermelhas, dentro da nossa barraca). Mas estava muito mal fisicamente, já mancava, inchada, dores nos joelhos, sabia que já estava com uma infecção. A consulta com o médico confirmou a infecção por provável Stafilococus, em um grau alarmante; uma intervenção medicamentosa sem resultado; uma alergia generalizada por hipersensibilidade aos medicamentos e; uma parte do tecido de minha coxa com necrose, cuja sugestão do médico chileno era a de fazer uma raspagem para retirar a necrose e começar a tratar a infecção, sabe-se lá com quais medicações, já que a bactéria se mostrava resistentes à enxurrada de antibióticos, antialérgicos que tinha tomado antes.

Poderia ter feito tudo lá por Chile, mas a decisão de raspar minha pele e “deixar o corpo sangrar para curar”, me deixou bastante ansiosa. Eu sabia que meu problema já não era mais uma picada de aranha, era uma infecção que estava encaminhando para o sistema como um todo. Tinha ainda um agravante a mais, o fato de eu tomar uma dose diária de corticóide (por tratamento genético na glândula supra-renal) e a informação do médico chileno de que eu deveria parar de tomar o corticóide imediatamente. Mas, a recomendação do meu endocrinologista era a de triplicar a dose caso apresentasse um processo infeccioso. Fiquei muito confusa, tentei a ponte entre o médico do Chile e os médicos do Brasil, mas tudo corria sem sucesso. Se fizesse esta pequena cirurgia e tivesse uma complicação maior com medicação e tivesse que voltar para o Brasil, seria pior depois de uma lesão aberta, ainda por cicatrizar.
Decidi voltar, me recuperar e refazer uma série de exames que são fundamentais neste momento. Cheguei ao Brasil muito mal, em todos os aspectos que abrangem este adjetivo. Balmaceda – Santiago – Buenos Aires – São Paulo – Rio de Janeiro – Salvador – João Pessoa.

Achei que ia “surtar” de tanto cansada, realmente não entendo ainda como tive energia suficiente. Um tratamento junto de pessoas que confiamos e cercado de pessoas que amamos, é muito diferente. Isto por si só, passa a ser um elemento terapêutico.

Já em recuperação para a bactéria do Stafilococus e do tecido necrosado, escrevi para um especialista em aranhas do Instituto Vital Brazil, no Rio de Janeiro, lhe enviei minhas fotos e explicações da evolução dos sinais e sintomas, foi confirmado pelo Instituto com 98% de certeza, uma picada de aranha marrom (venenosa) muito comum naquela região do Chile.

Pela picada ter sido na parte externa da coxa, não tive sequelas graves. É interessante buscar informações, não somente à nível de identificação destas aranhas, mas, sobretudo reconhecimento do aspecto da lesão e evolução dos sinais e sintomas apresentados. Durante dias, ainda em campo, mesmo junto de pessoas muito instruídas, ficamos muito duvidosos se o que estávamos acompanhando era ou não uma lesão causada por veneno de aranha. Nenhum de nós tínhamos vivenciado de perto um quadro de picada de aranha marrom. Mantenha- se informado.

Agora é teste de paciência. Me recuperar totalmente para 2010.

Agora é hora de tecer a minha teia. É hora de criação.

5 comentários:

Adriana Lima disse...

Essas coisas só acontecem com os fortes!

Closet Sale disse...

sorte a nossa q vc nos ouviu e agora está bem :))) beijoooo

Unknown disse...

Estamos torcendo para sua plena recuperação. Arretada!
bjs,

Maíra Beltrão disse...

Poxa vida Mariana, que história heim... bom já te encontrei e sei que ta melhorando!! mas você realmente foi uma guerreira! e que bom que vai servir de alguma forma pro seu crescimento interior.. beijos

Teresa disse...

Mita, desde sempre você é guerreira, pertence mesmo à linhagem dos guerreiros, mesmo que não saiba o que isso significa. Hora dessas te explico melhor, quando você aparecer aqui pelo lado sudoeste, mais exatemente no Rio de Janeiro.
O suco verde germinado ficará pronto assim que vc chegar. Avise.
Amor e Luz cheios de Paz.
Teresa Carvalho